Com a edição da Portaria no 639 de 31 de março de 2020 do Ministério da Saúde sugiram dúvidas, entre elas sobre a obrigatoriedade do credenciamento e eventual punição disciplinar ou ética pelo órgão de classe em caso de descumprimento da normativa supra.
O credenciamento é obrigatório, sendo voltado à capacitação e ao cadastramento de profissionais da área da saúde para o enfrentamento da pandemia. Deverá ser realizado pelo profissional acessando o link www.registrarh-saude.dataprev.gov.br/cadastro.
O cadastramento é regulamentado pelo Decreto no 7.616, de 17 de novembro de 2011, em seu artigo 13o, que dispõe sobre a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional OMS (Organização Mundial da Saúde), ocorrida em 30 de janeiro de 2020.
Neste primeiro momento não existe uma convocação, mas sim atualização do cadastro dos profissionais, bem como consulta se o profissional deseja ou não se voluntariar para trabalhar no enfrentamento à COVID-19.
Em relação às punições disciplinares e éticas dos profissionais da saúde, somente são aplicadas por seus respectivos órgãos de fiscalização, após devidamente apurada a eventual infração ao Código de Ética e exercido o direito à ampla defesa e ao contraditório.
A referida portaria não determina a apuração e aplicação de punição aos 14 (quatorze) profissionais da saúde por seus órgãos de fiscalização, apenas que o Ministério da Saúde identificará e informará aos respectivos conselhos os profissionais que não fizeram o cadastramento nem concluíram os cursos à distância de capacitação para o enfrentamento da COVID-19.
Os profissionais da saúde relacionados são: I – serviço social; II – biologia; III – biomedicina; III – biomedicina; IV – educação física; V – enfermagem; VI – farmácia; VII – fisioterapia e terapia ocupacional; VIII – fonoaudiologia; IX – medicina; XII – odontologia; XIII – psicologia; e XIV – técnicos em radiologia.
Para que haja a abertura do processo disciplinar ou ético, é imprescindível que sejam constatados indícios de conduta profissional em contrariedade ao Código de Ética, aplicável aqueles profissionais da saúde.
Entretanto, através da citada portaria, é sinalizada a possibilidade de apuração de falta ética. Explica-se: a própria informação prestada pelo Ministério da Saúde aos órgãos de fiscalização poderá ser autuada na forma de denúncia e, em consequência, a punição disciplinar ou ética pode vir a ocorrer no futuro, por causa da subjetividade e da aplicação de alguns artigos, relacionados aos Códigos de Ética abaixo:
I) Código de Ética do/a Assistente Social (Resolução CFESS 594/2011):
Art. 22 Constituem infrações disciplinares:
(…)
B – não cumprir, no prazo estabelecido, determinação emanada do órgão ou autoridade dos Conselhos, em matéria destes, depois de regularmente notificado/a.
II) Código de Ética do Profissional Biólogo (RESOLUÇÃO No 2/2002):
Art. 6o – São deveres profissionais do Biólogo:
(…)
XII – Colaborar com os CRBios e o CFBio, atendendo suas convocações e normas.
III) Código de Ética da Profissão de Biomédico (RESOLUÇÃO No. 198/2011):
Art. 4o – Obriga-se o Biomédico a:
(…)
III – Respeitar as leis e normas estabelecidas para o exercício da profissão;
(…)
Art. 5o – No exercício de sua atividade, o Biomédico também deverá:
(…)
X – cooperar com a proteção do meio ambiente e da saúde pública;
(…)
Art. 13o – Nas relações com o Conselho Federal e os Regionais, o Biomédico deverá:
(…)
V – atender sempre convocação feita pelo órgão profissional, a não ser por motivo de força maior, comprovadamente justificado.
(…)
IV) Código de Ética dos Profissionais de Educação Física (RESOLUÇÃO CONFEF no 307/2015):
Art. 9o – No relacionamento com os órgãos e entidades representativos da categoria e da classe, o Profissional de Educação Física observará as seguintes normas de conduta:
(…)
VII – acatar as deliberações emanadas do Sistema CONFEF/CREFs.
V) Código de Deontologia de Enfermagem (RESOLUÇÃO COFEN No 564/2017):
CAPÍTULO II – DOS DEVERES
(…)
Art. 49 Disponibilizar assistência de Enfermagem à coletividade em casos de emergência, epidemia, catástrofe e desastre, sem pleitear vantagens pessoais, quando convocado.
CAPÍTULO III – DAS PROIBIÇÕES
(…)
Art. 76 Negar assistência de enfermagem em situações de urgência, emergência, epidemia, desastre e catástrofe, desde que não ofereça risco a integridade física do profissional.
VI) Código de Ética da Profissão Farmacêutica (RESOLUÇÃO No 417/2004):
Art. 11 – O farmacêutico, durante o tempo em que permanecer inscrito em um Conselho Regional de Farmácia, independentemente de estar ou não no exercício efetivo da profissão, deve:
(…)
II – colocar seus serviços profissionais à disposição das autoridades constituídas, se solicitado, em caso de conflito social interno, catástrofe ou epidemia, independentemente de haver ou não remuneração ou vantagem pessoal.
VII) Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia (Resolução no 424/2013):
Artigo 9o – Constituem-se deveres fundamentais do fisioterapeuta, segundo sua área e atribuição específica:
(…)
V – colocar seus serviços profissionais à disposição da comunidade em caso de guerra, catástrofe, epidemia ou crise social, sem pleitear vantagem pessoal incompatível com o princípio de bioética de justiça;
(…)
Artigo 10 – É proibido ao fisioterapeuta:
(…)
VI – deixar de atender a convocação do Conselho Regional de Fisioterapia e de Terapia Ocupacional à que pertencer ou do Conselho Federal de Fisioterapia e de Terapia Ocupacional.
(…)
VIII) Código de Ética da Fonoaudiologia (Resolução CFFa no 490/2016):
Art. 6o Constituem deveres gerais do fonoaudiólogo:
(…)
II – atender às convocações e cumprir as determinações e normas emanadas do Sistema de Conselhos de Fonoaudiologia;
(…)
XIV – exigir vantagens pessoais e profissionais ao disponibilizar seus serviços fonoaudiológicos à comunidade em casos de emergência, epidemia e catástrofe.
IX) Código de Ética Médica (Resolução CFM n° 2.217/2018):
É vedado ao médico:
(…)
Art. 21 Deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou infringir a legislação pertinente.
X) Código de Ética do Médico Veterinário (RESOLUÇÃO No 1138/2016)
Art. 7o É direito do médico veterinário:
(…)
V – escolher livremente seus clientes ou pacientes, com exceção dos seguintes casos:
(…)
c) nos casos de emergência ou de perigo imediato para a vida do animal ou do homem.
(…)
Art. 9o O médico veterinário será responsabilizado pelos atos que, no exercício da profissão, praticar com dolo ou culpa, respondendo civil e penalmente pelas infrações éticas e ações que venham a causar dano ao paciente ou ao cliente e, principalmente;
(…)
V – deixar de cumprir, sem justificativa, as normas emanadas dos órgãos ou entidades públicas, inclusive dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina Veterinária.
XI) Código de Ética e de Conduta do Nutricionista (RESOLUÇÃO CFN No 599/2018)
Art. 88 – É dever do nutricionista cumprir as normas definidas pelos Conselhos Federal e Regionais de Nutricionistas e atender, nos prazos e condições indicadas, às convocações, intimações ou notificações.
XII) Código de Ética Odontológica (RESOLUÇÃO CFO-118/2012):
Art. 9o. Constituem deveres fundamentais dos inscritos e sua violação caracteriza infração ética:
(…)
IX – promover a saúde coletiva no desempenho de suas funções, cargos e cidadania, independentemente de exercer a profissão no setor público ou privado.
XIII) Código de Ética Profissional do Psicólogo (RESOLUÇÃO CFP No 010/2005):
Art. 1o – São deveres fundamentais dos psicólogos:
(…)
d) Prestar serviços profissionais em situações de calamidade pública ou de emergência, sem visar benefício pessoal.
XIV) Código de Ética dos Profissionais das Técnicas Radiológicas (RESOLUÇÃO CONTER No 15/2011):
Art. 22 – O tecnólogo, Técnico e Auxiliar de Radiologia deverão observar e cumprir as normas emanadas do Conselho Nacional e Conselhos Regionais de Técnicos em Radiologia, atendendo ainda as convocações, intimações e notificações no prazo determinado.
REQUISIÇÃO DE BENS e SERVIÇOS NA ÁREA DA SAÚDE
Desde a publicação da recente Portaria no 639, de 31 de março de 2020 do Ministério da Saúde também vem-se questionando, por parte dos profissionais da saúde, sobre uma eventual “convocação obrigatória” para prestação de serviço público na área da saúde. Neste contexto, a presente nota visa apenas apontar alguns esclarecimentos e dispositivos legais, longe do objetivo de esgotar o assunto.
O primeiro ponto a ser esclarecido é que a portaria acima mencionada do Ministério da Saúde não trata, em momento algum, sobre requisição de bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, mas, tão somente, criação de um cadastro geral de profissionais da área da saúde habilitados para atuar em território nacional, para orientar os entes federados suas ações de enfrentamento à COVID-19 (art. 2o ,I) e capacitação dos profissionais da área de saúde nos protocolos oficiais de enfrentamento à COVID-19, aprovados pelo Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE-nCoV) (art. 2o, II), por meio de cursos à distância (art. 7o).
Assunto diverso é a requisição de bens e serviços essenciais. Tal assunto detém previsão na legislação brasileira. Em primeira linha, discorre o art. 5o, inciso XXV, da Constituição Federal (CF) que: “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. Lembrando que compete à União planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas (art. 21, XVIII, CF), bem como compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre proteção e defesa da saúde (Art. 24, XII, CF), salientando que superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário (art. 24, §4o, CF). Além disso, são de relevância pública as ações e serviços de saúde, assim como a saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196, 197 e 198, CF).
Em termos de legislação infraconstitucional, dispõe o art. 25 da Lei no 6.439, de 1o de setembro de 1977, a qual institui o sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, onde retrata que:
“Art 25 – Em caso de calamidade pública, perigo público iminente ou ameaça de paralisação das atividades de interesse da população a cargo das entidades do SINPAS, o Poder Executivo poderá requisitar os bens e serviços essenciais à sua continuidade, assegurada ao proprietário indenização ulterior.
No mesmo sentido, aborda a Lei No 8.080, DE 19 DE SETEMBRO DE 1990, a qual dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Pontua-se, ainda, que esta lei regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público ou privado (art. 1o). Vejamos, então o art. 15:
“Art. 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as seguintes atribuições:
XIII – para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização”;
Recentemente, em razão das medidas para enfrentamento da emergência da saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, publicou-se a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, a qual em seu art. 3o, inciso VII, discorre:
“Art. 3o Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Medida Provisória no 926, de 2020)
VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa.”
Assim, para a requisição de bens e serviços relacionados à saúde da população, é mister ocorrer situação de perigo público iminente, calamidade pública no setor de saúde ou irrupção (invasão ou incursão) de epidemias.
Iminente é um termo com origem no vocábulo latino imminens que, por sua vez, resulta de imminēre (“ameaçar”). Trata-se de um adjetivo que se utiliza para designar aquilo que ameaça ou que acontecerá brevemente. Com efeito, para se caracterizar “perigo público iminente”, a justificar requisição administrativa, na lição dos doutos, forçoso se verifiquem ocasiões de guerra, revolução, catástrofe provocada por acontecimentos da natureza, verbi gratia, epidemias, inundações, terremotos e acontecimentos semelhantes.
Por outro lado, para evidenciar “calamidade pública” ou catástrofe significa desgraça pública, flagelo, uma situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público, conforme lições da lavra de José Cretella Júnior, que também perfilho, importa que se sucedam aqueles fatores anormais e adversos afetando gravemente a comunidade, exemplificados pelo eminente administrativista com secas prolongadas e devastadoras, grandes incêndios e inundações, outros flagelos semelhantes, a invasão súbita do território de um Estado por moléstia contagiosa ou pestilencial, apta a expandir-se de forma epidêmica, de disseminação rápida e de alta letalidade, todas estas ocorrências bem diversas daquelas que só se desenvolvem ao favor da ausência de providências adequadas e do descuido no emprego dos meios conhecidos de profilaxia usual.
Epidemia representa a ocorrência de um agravo acima da média (ou mediana) histórica de sua ocorrência. O agravo causador de uma epidemia tem geralmente aparecimento súbito e se propaga por determinado período de tempo em determinada área geográfica, acometendo frequentemente elevado número de pessoas. Assim, a situação de irrupção de epidemias, invasão de uma ‘praga’ devastadora, que causa o pânico da contaminação, ao nosso ver, já se encontra consolidada dentro das apreciações de perigo iminente ou calamidade pública.
Ainda, há que se mencionar que o recente Decreto Legislativo no 6, de 2020, do Congresso Nacional, reconhece a ocorrência do estado de calamidade pública.
Deste modo, a autoridade competente da esfera administrativa da União, Estado e Municípios poderá requisitar bens e serviços na área da saúde, tanto de pessoas naturais (serviço social; biologia; biomedicina; educação física; enfermagem; farmácia; fisioterapia e terapia ocupacional; fonoaudiologia; medicina; medicina veterinária; nutrição; odontologia; psicologia; e técnicos em radiologia – art. 1o, §1o, da Portaria 639/2020) como de jurídicas (hospitais, clínicas, laboratórios, etc), sendo-lhes assegurada justa indenização.
Por fim, eventual normal legal que vier a ser publicada poderá ser discutida sua legalidade, bem como situações pessoais e específicas poderão ser levadas perante o Poder Judiciário, em especial, diante dos princípios constitucionais previstos no art. 5o, incisos II, X, XV, XXII, XXXV, LIV, dentre outros da Constituição Federal.
Brasília, DF, 03 de abril de 2020.
WALDUY FERNANDES DE OLIVEIRA OAB/DF 21.529
YUKARY NAGATANI OAB/DF 27.613
ÉRICA LIRA DAMAZIO OAB/DF 33.890
LUANA VIEIRA DE JESUS LEOCADIO OAB/DF 61.683
WENDELL DO CARMO SANT’ ANA OAB/DF 16.185