Desde o início das medidas adotadas pelo Governo Federal, Estados e Municípios, em meados de 20 de março de 2020, os impactos a nível global não deixaram imune o mercado imobiliário, em seus diversificados segmentos e relações jurídicas. Os efeitos são sentidos pelos vários ramos profissionais envolvidos no setor da construção civil desde corretores de imóveis, advogados especialistas na área, empreendedores e empresas de construção e incorporação.
Os efeitos provocados em pouco mais de 2 meses pelas medidas restritivas de distanciamento social são mais catastróficos do que as últimas crises mundiais, sejam elas financeiras ou mesmo oriundas das grandes guerras mundiais.
Do noticiário, diariamente, chegam notícias de que não apenas inexiste uma previsão mínima para o fim da pandemia, como também não se verifica uma segurança sobre quando as medidas implantadas, as quais impactam o emprego e a geração de renda possam ser minimamente abrandadas, assim como a cadeia produtiva encontra-se praticamente paralisada.
Os primeiros impactos sentidos no mercado, considerando tanto construtoras, incorporadoras, como também o mercado consumidor, dão conta de incontáveis rescisões contratuais, por desistência da aquisição de imóveis de alto padrão, ou mesmo de médio e baixo padrão, assim como de renegociações daqueles que, bravamente, ainda insistem na continuidade do negócio.
Todavia, ambas as situações afetam, de sobremaneira, todo o mercado imobiliário, pois interferem no fluxo financeiro das empresas, que já são afetadas com a escassez de matéria prima, insumos ou mesmo de maquinário e mão-de-obra, dada a contaminação de profissionais e seu afastamento das atividades.
Não obstante a esta realidade, tem-se ainda uma incerteza sobre projetos de lei e medidas provisórias, as quais são editadas a todo momento, alterando e dando novas diretrizes a todos os seguimentos da cadeia de produção, emprego e renda.
Diante de um cenário cada vez mais incerto, é cada vez mais comum nos depararmos com casos em que as obrigações contratuais se apresentem inúteis ao credor, ou em que o cumprimento desta seja inviável ou inalcançável.
Neste momento, se faz necessária a minuciosa análise pelos operadores do direito na busca de soluções que transitem entre revisar, resilir ou mesmo resolver a questão, com base no arcabouço jurídico já existente e conhecido, assim como a atual mutação e inovação de medidas e instrumentos jurídicos novos, que vêm surgindo com o advento da pandemia.
E para se ter ao menos um norte, a diferenciação entre os contratos empresariais e aqueles tipicamente de consumo é imprescindível, considerando que há um tratamento diferenciado tanto pela doutrina quanto pela jovem jurisprudência criada em tempos da Covid-19. Como exemplo, o de contratos firmados de subcontratação e execução de projetos ou mesmo de empreitada na construção de empreendimentos em relação aos de aquisição de um imóvel na planta.
O primeiro caso, claramente, é aplicado e disciplinado à luz do Código Civil1 e da legislação específica aplicável ao seguimento, considerando, em tese, a igualdade de condições negociais das partes quanto da avença. Ao passo que o outro, com total amparo do que preconiza o CDC – Código de Defesa do Consumidor2, dada a sua natureza.
Em comum, em ambos os casos, a clara necessidade de análise e busca de soluções, considerando-se o caso concreto, suas particularidades, abrangência dos efeitos das restrições e decretos, buscando aproximar-se ao máximo da real causa do desarranjo contratual.
Portanto, verifica-se ser possível buscar soluções e bons efeitos aos negócios jurídicos, de forma personalizada a cada uma das situações jurídicas, minimizando-se os efeitos maléficos da crise instaurada pela pandemia, sem, contudo, sacrificar qualquer das partes em detrimento da outra. Isto se dá porque a pandemia não afetou a todos consumidores, prestadores de serviço e fornecedores de produtos de igual forma, não se podendo imaginar que o remédio jurídico a todos seja genérico e impessoal.
As medidas adotadas atualmente, no sentido de atenuar os efeitos da pandemia, mostram-se claramente intervencionistas e com objetivo claro de combate a uma recessão já instaurada, sendo, infelizmente, medidas na contramão da recém aprovada Lei no 13.874/20193, que veio para introduzir a Liberdade Econômica e seus conceitos no mercado brasileiro.
Neste sentido, como já abordamos em textos anteriores, está em curso no Senado o Projeto de Lei 1.179/2020, que visa a implementação de medidas emergenciais com dispositivos que criam mecanismos transitórios válidos durante os efeitos da pandemia e das restrições de distanciamento social. Tais medidas atingem diretamente as relações jurídicas de Direito Privado, dentre elas, sua validade, compreendida entre a edição do Decreto Legislativo no 64, que implementou o início das medidas restritivas para o combate a pandemia.
Dentre as principais medidas previstas no Projeto de Lei no 1.179/20205, que se trata de um regime transitório, tem-se a suspensão da aplicação de normas específicas, sem implicar em revogação ou alteração, como impedimento e suspensão de prazos prescricionais, conforme a situação, mas que dependem da aprovação da lei para surtir seu devido efeito. Enquanto isso, não há qualquer previsão ou fundamento legal para aplicação de tal medida.
Prevê o projeto de lei, ainda, que seus efeitos perdurariam até 30 de outubro de 2020, assim como a inaplicabilidade das normas de proteção a contratos subordinados exclusivamente ao Código Civil, ou seja, entre empresas ou empresários.
Outra questão já pontuada em nossos textos anteriores, e não menos importante, diz respeito à Lei 13.874/2019, que alterou a redação do art. 421, do Código Civil, introduzindo o parágrafo único que prevê que: “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”.
Uma análise deste dispositivo, considerando o contexto do presente estudo, nos diz a necessidade já assinalada acima de análise pormenorizada de cada caso concreto. Dessa forma, a possibilidade de revisão contratual se tornou medida “excepcional” e “limitada”, especialmente quanto aos contratos civis e empresariais em geral. Por consequência lógica, fica evidente que haverá uma participação em grande escala do Poder Judiciário na pacificação das lides envolvendo contratos desta natureza.
O advento da pandemia da Covid-19, em uma análise clara, se enquadra, em tese, em uma questão de força maior, fazendo incidir ao caso concreto a ideia de um evento externo, inevitável ou mesmo alheio a qualquer ato praticado pelas partes. Mas o uso deste instituto não pode ser aplicado ou mesmo invocado de forma indiscriminada, na busca por uma revisão ou mesmo de exoneração de obrigações contratuais claras.
1 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm
2 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.html
3 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm
4 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm
5 – https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2247564
O oportunismo com a pandemia não deve ser aceito como caminho para anistias ou mesmo para arranjos jurídicos de improvável sobrevivência ao crivo do Poder Judiciário. Em outras palavras, caberá ao julgador, em última instância, julgar se há exclusividade na pandemia por eventual inadimplemento contratual ou mesmo seu desequilíbrio.
No caso de contratos imobiliários, considerando fatores que possam levar a uma inviabilidade de cumprimento de prazos, fica evidente a necessidade de uma análise acurada da prorrogação excepcional a ser validada, considerando que os efeitos da pandemia atingem a toda a cadeia produtiva, tornando inviável, no caso concreto apurado, o cumprimento de prazos previamente estabelecidos.
Portanto, será de imprescindível necessidade a identificação da origem do impedimento ao cumprimento regular do contrato, para só então se ter uma análise correta sobre a programação estabelecida originalmente no contrato e a viabilidade, prazo e cabimento de uma tolerância ou revisão contratual.
No caso de contratos regidos pelo CDC, a previsão do art. 422 é de igual imprescindibilidade, em especial quanto ao dever geral de boa-fé objetiva, com o dever da informação correta, transparente e com o espírito de cooperação que deve nortear a relação.
Outro ponto fundamental do estudo diz respeito a pontualidade no cumprimento das obrigações no pagamento das prestações de aquisição de imóveis, eis que ainda que se considere os efeitos e as medidas legais em vigor, não há qualquer suspensão da exigibilidade das mesmas.
Somente poderá se estar diante de uma situação de possível – mas não certa – suspensão da exigibilidade de prestações, quando, no caso concreto, venha a se ter a configuração efetiva de força maior ou fato do príncipe. Deve-se analisar não a pandemia e suas consequências em si, mas os efetivos efeitos no devedor, ou consumidor, que venham a lhe colocar uma intransponível impossibilidade de cumprimento, involuntário, da obrigação originária.
O estudo ora apresentado, considerando todas as situações atuais, dentre as quais as de decisões judiciais desconexas com o atual cenário do mercado e das condições deste em razão da pandemia, nos leva a uma inevitável conclusão da necessidade de orientação jurídica razoável, sóbria e de evidente mediação dos conflitos decorrentes do cenário de total desequilíbrio, frente às condições originais em que foram firmados os contratos.
Neste sentido, é de se priorizar a mediação e composição extrajudicial, amparada em sólidas informações e fundamentos, buscando o emprego das melhores técnicas para a preservação dos negócios jurídicos, com base especialmente na boa-fé objetiva para a renegociação das bases contratuais, de modo a se manter o adimplemento das obrigações, em especial, quanto ao mercado imobiliário, cujos contratos são de longa duração e em valores consideráveis bem como de origem em recursos de economias familiares.
Temos trabalhado neste alinhamento profissional, de mediação e composição, utilizando-se do Poder Judiciário apenas em casos extremos, justamente pela ausência de instrumentos mais efetivos que possam trazer resultados tão positivos, tanto ao empresariado, como aos consumidores.
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Liander Michelon – OAB/DF 20.201
Raul Canal e Advogados Associados